Em uma infância nem tão distante

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Era tarde da noite, não diferente de tantas outras daquelas noites de verão em Campo Grande, quando o calor do dia que teimosamente insistia em penetrar noite adentro começava a misturar-se com o frescor da madrugada.

Quase tudo estava calmo naquele lugar, não fosse o suave farfalhar da relva, reclamando dos passos sorrateiros daqueles garotos, que com o mesmo esforço que faziam para conter a excitação do ilícito que se seguiria, evitavam qualquer ruído durante a subida até o ponto combinado.

Momentos antes, quando as conversas e brincadeiras habituais já davam seus rotineiros sinais de esgotamento e algumas mães já chamavam os seus para dentro, como era o costume da época, eis que chega à roda o Magal, triunfante em sua croizinha. Com uma derrapada rasante e circular em torno da galera freou com uma fulminante pressão do carcomido solado da sua havaiana sobre o pneu traseiro da magrela e pulou cambaleante enquanto a croizinha ia por conta própria de encontro à grama do campinho.

Houve um breve momento de assombro e trocas de olhares suspeitosos de que a diversão daquela noite ainda não havia acabado, afinal, o sorriso maroto do Magal o denunciava até mesmo sob o fraco luzir dos distantes postes do condomínio. Eis que ele abre uma desgastada sacola de mercado no centro da roda, ainda não conseguindo desfazer o sorriso do rosto, misto de incontido prazer com medo e ansiedade.

Palavras eram desnecessárias ali para aqueles garotos, que já eram ligados intimamente por inúmeras outras travessuras, pelo inocente senso de aventura e irremediável vontade de enfrentar os limites da convenção do condomínio, que na verdade nenhum deles sequer sabia da existência.

Eram bombinhas, dezenas delas, cada uma desafiando orgulhosamente o diminutivo do próprio nome e exalando o potencial arrebatador e respeitável que dentre todos os divertimentos só as bombinhas tinham o direito de ter. O esplendor daqueles artefatos fez circular entre os presentes o mesmo sentimento, compassando seus corações na mesma batida, unindo seus olhares, respirações e seus gélidos suores, como uma névoa crescente, que toma conta de tudo, em instantes todos ali eram um só desejo pirotécnico.

O primeiro a falar foi o Caveirinha, com a afobação natural aos caçulas das turmas, e até mesmo o mais novo tinha a astúcia de ler as entrelinhas e objetivamente foi direto ao que interessa: – Quantas são?

- Cinquenta, respondeu prontamente o Magal, agora recomposto e com um ar levemente altivo, tanto por ser o patrono daquele momento quanto por ter transformado aquele quase tombo de sua croizinha em algo que pareceu propositalmente ousado.

- Massa! exclamaram uns três em quase uníssono, já contendo o ímpeto de enfiar a mão na sacola e experimentar a potência do estrondo.

Foi um dos gêmeos, não sei qual, que cantou a bola para o que viria a ser o plano fatal:

- Quantos blocos tem no condomínio?
- 25, disse o Fabão, com a certeira empáfia que só cabia aos mais velhos da turma ter.
- Aquele é o último, disse, apontando para o breu que ia pra lá do bueiro e supostamente estaria o derradeiro prédio.
- Cada bloco tem duas portas, certinho! Dessa vez era ou outro gêmeo que dizia, ou seria o mesmo? Enfim, dito isso quase não sobrou sacola quando todos em frenesi começaram a lutar pelas suas bombinhas, que alguns respeitosamente já chamavam de rojão.

E assim o plano misteriosamente foi feito sem precisar ser dito. Quase não deu certo por alguns detalhes de ordem prática que foram prontamente resolvidos. O fato de ter na verdade 43 bombinhas não foi problema, afinal, duas por bloco já era luxo. O problema mesmo foi arranjar as 17 pessoas para descer em linha, cada uma das fileiras de portas dos blocos, afinal nem todos tiveram culhões suficientes para tal e outros já haviam sido arrastado para casa por suas coléricas mães. Não fosse as intrépidas irmãs mais novas do Magal, que topavam mais traquinagem que muitos marmanjos, o plano não teria dado certo, afinal, foi uma delas que conseguiu engenhosamente algumas caixas de fósforos, que somados ao isqueiro que o Coquito arrumou possibilitaram a execução da empreitada. Pequenos delitos que poderiam sair caros em um ajuste de contas com os pais, mas que certamente valeriam a pena.

Um ponto unânime foi que o bloco do Seu Farias, síndico sem coração, merecia três bombinhas, sendo uma diretamente na porta do próprio, que por esse tempo não dava sossego para a turma e ameaçava cortar o frondoso pé de manga, histórico ponto de encontro onde maduros ou de vez com sal, seus frutos sempre eram degustados. A árvore que servia de suporte para balanços radicais e de escada para possibilitar o aprendizado sobre o que  fazem os adultos no suposto isolamento de seus quartos do terceiro andar.

Ah sim, o farfalhar da relva. Ele reinou no condomínio em perfeita harmonia com o cricrilar dos grilos e o canto distante dos sapos lá no córrego, depois da cerca. Até que foi dado o sinal conforme combinado, por um dos menos corajosos, que preferiu essa tarefa por lhe permitir uma fuga mais rápida.

Sincronicamente começou a exultante e triunfal descida, corações saindo pela boca, euforia, medo e adrenalina, tudo num balaio só. Melhor não pensar em nada, ponderou um dos gêmeos, ou quem sabe os dois. – Agora já era, o plano precisava seguir. Um a um todos os blocos receberam seu presente, em cada uma das entradas, foi tão rápido que quando BUM, estourou a primeira e o pessoal já estava plantando a terceira. E BUM. BUM, BUM, BBUUM-um-um-um até só restar o eco latejante por todo o condomínio, que por um instante parecia o mundo todo, o que pra eles realmente era. Um mundo alegre e despretensioso, divertido e desafiador, um mundo feliz.

Quando o último estrondo retumbou, todos já estavam juntos no seguro conforto da escuridão, existente na cerca do fundo do condomínio Indaiá, depois daquele campinho onde a turma se reunia para as pueris brincadeiras que ficaram em algum tempo do passado, ali onde nem depois de todas as luzes acesas poderiam ser vistos. Arfantes, extasiados, contemplaram naquelas vívidas janelas a beleza de mais uma missão cumprida e mais uma história pra guardar para toda a vida.

* Nota > Este texto é baseado em fatos reais, a história das bombinhas aconteceu. Já os detalhes, nomes e fatos acessórios são licença poética do autor :)

Gê Bender

Programador por ofício desde 1999, hoje é diretor da Mais Empresas - Tecnologia da Informação, empresa estabelecida no mercado há aproximadamente 10 anos. Entusiasta dos métodos ágeis para desenvolvimento de software e das técnicas de Lean Startup para o empreendedorismo digital.

1 comment

  1. mocorindaiano 1   •  

    Lindo texto, me lembrou muito minha infancia travessa.

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